"AMANTES IMPERFEITOS" O ÚLTIMO GRANDE LIVRO DE FERNANDA VILLAS BOAS
Não me recordo bem quando “Amantes Imperfeitos” chegou por aqui. Sei que a carinhosa dedicatória data de 15 de abril deste ano eleitoral. Sei também que pensei assim: “Ainda há pouco dei notícia de ‘Rubedo’, vou esperar um pouco para falar de ‘Amantes Imperfeitos’, talvez, mais uma semana.” E aí vieram outros acontecimentos, trabalhos de revisão e uma pequena reforma no apartamento. O tempo disponível, como sempre, desaparecendo. Pouco entrei no Facebook e, por isso, não percebi que Fernanda não mais aparecia. Por fim, no dia 26 de julho, notei uma postagem de Clécia Oliveira, que, no dia 12 de julho, inaugurava, no Facebook, um evento de récita de poesia intitulado “Momento Fio Poético”. E ela optou por fazer o que batizou de “primeiro episódio”, justamente com uma homenagem à Fernanda Villas Boas. Assim, Clécia leu, belamente, três poemas recentes da homenageada. Fazia exatamente um mês do falecimento de Fernanda, ironicamente ocorrido no Dia dos Namorados, 12 de junho. E, segundo informações de amigos da escritora, ela teria falecido de infarto, no aeroporto, quando ia embarcar para Paris, a capital mais romântica do mundo.
Friso esses aspectos porque a questão do amor (e sua ausência) sempre foi presente em seus livros, especialmente, no último que nos legou: “Amantes imperfeitos”. E quando falo em amor, na poesia de Fernanda, não me refiro àqueles textos sublimados, artificiais, repletos de lugares-comuns. Em Fernanda, o amor é intenso, transgressor, erótico, lascivo, explosivo, transformador: numa palavra “Rubedo”, como no título de seu penúltimo livro, termo cujo significado remete à transmutação e iluminação da matéria. Na poesia moderna de Fernanda tudo se mistura: política, vida, morte, anjos, paraíso, aves, mares, lembranças… São recortes múltiplos regados ao vinho do amor transbordante da autora. Não sem motivo, várias das capas de seus livros são feitas de colagens, em que o real e o onírico se mesclam.
Na época em que fiz as orelhas para seu “Ave do Paraíso”, de 2019, Fernanda comentou comigo que gostaria de publicar dez livros. Bem, se somarmos aos sete livros de poemas os cinco anteriores de ensaios, ela atingiu 12 livros. O fato é que, a partir de 2017, produziu e publicou poesia intensamente: “Alta Voltagem” (2017); “Alma Lasciva” (2018); “Ave do Paraíso” (2019); “No Coração da Loucura” (2019); “Mar Aberto” (2021); “Rubedo” (2021); e “Amantes Imperfeitos” (2022).
Quanto a seus livros de ensaios, temos (conforme listados em “Amantes imperfeitos”): “Luz Própria”; “Análise Poética do Discurso de Orfeu”; “Agora eu era o Herói: estudo dos arquétipos junguianos no discurso poético de Chico Buarque” (à venda no Alfaya Livreiro); “A Fração Inatingível”; e “No Limiar da Liberdade”. Como se pode ver pelos títulos, seja na poesia ou na prosa, a escritora se permitiu voos profundos e transcendentes.
O desenlace final de sua vida, com todo respeito, tem muito de literário. Lembra-me deveras dos contos desconcertantes desse grande mestre do gênero que foi P. J. Ribeiro (1942-2020), de Cataguases-MG.
Tentar falar, analisar poesia é sempre difícil. Sem dúvida, falar de um poema é traí-lo. Se um poema é bom, fala por si. O único meio de se atingi-lo é lendo-o. Não é sem motivo que muitos prefaciadores, ao escrever sobre um bom poeta, terminam por reproduzir-lhes os versos em seus ensaios – o que, aliás, sempre que possível, tento evitar também, para não estragar ou diluir o impacto que o leitor terá ao ler as obras.
O que chateia, além da perda em si, é que se trata de mais uma poeta de valor que passou desconhecida do grande público. Sua dúzia de livros aí está. Obras insubmissas, questionadoras, de uma força que vai além das convenções da sintaxe, das banalidades sociais. Decididamente os trabalhos de Fernanda não eram “Poemas Educados”, para usar o ferino título de P. J. Ribeiro (que, além de contos, produziu poesia). Sem se preocupar com métricas, com rimas, sem escravizar-se a fórmulas prontas, sem se preocupar em “agradar”, Fernanda deu o seu recado. Ela, que via a poesia tanto como linguagem quanto como expressão de sua inquietude. Foi-se a poeta. E se foi, sem dúvida, porque seu espírito era inconformado demais para se acomodar às convenções. Sua poesia consegue a rara combinação de grito e leveza; de escândalo e quietude. Morreu a poeta antifascista declarada. Não deu tempo de inserir na urna o seu voto de repúdio aos repugnantes que ora se acham indevidamente no poder. (Ricardo Alfaya, 30.07.2022)
VOO PERDIDO
(VOL PERDU)
para Fernanda Villas Bôas (em memória)
Voici ma tristesse
Eis que em mim anoitece
Um pássaro triste
comeu meu alpiste
Deixou-me à míngua
em minha própria língua
Cependant
No entanto
Me voici aussi
Eis-me aqui também
assis en la chaise d’un avion
Sentado na poltrona de um avião
en attendent mon tour
esperando minha vez
de viajar para Paris
– nossa ilusão de Paraíso
(pour voyager à Paris ou au Paradis)
Seja lá o que isso realmente signifique
Peu importe ce que cela signifie vraiment
Todo paraíso é perdido
Tout le paradis est perdu
Ricardo Alfaya, 30.07.2022