Marina Colasanti me ensinou a amá-la, muito antes de eu saber de sua importância como escritora, muito antes ainda de saber que ela era esposa do grande poeta Affonso Romano de Sant’Anna.
Durante um período, eu voltava exausto do Banco (do BB) e da vida. Almoçava, dava um tempo e ligava na extinta (acho que acabou ou acabaram com ela) TVE. A desculpa era assistir ao filme de arte da sessão da tarde. Mas o que me interessava mesmo era o que vinha depois: um debate sobre a película, coordenado pela bela e extraordinária Marina Colasanti.
Um dia passaram um filme sobre eu não me lembro o quê, e o exibido aqui se atreveu a escrever uma carta para ela, comentando sobre o filme. A resposta veio com meia dúzia de palavras dela, bem formais, e um decepcionante carimbo impessoal da burocrática emissora do Governo. Mas esse carimbo não matou meu carinho por ela, a quem nunca conheci pessoalmente e de quem me deixei molhar, até hoje, pela chuva de textos que produziu.
O mais marcante, que cito sempre, creio que justamente tem o título de "Chovendo no Molhado", ou algo semelhante. É uma crônica, de um de seus livros, no qual fala na importância de o escritor "chover no molhado", isto é, como é importante voltar a certos temas, mesmo que se tenha a impressão de que tudo já foi dito sobre o assunto, pois aquilo que é produzido pela ignorância do senso comum é mais persistente do que se supõe. Você pensa, por exemplo: “Escrever sobre o reconhecimento da importância intelectual da mulher na sociedade? Ah, já se disse tudo sobre isso, não é mais necessário, é chover no molhado.” E eis que você vira a página e esbarra num texto de uma “autoridade” qualquer insistindo que as diferenças entre o homem e a mulher são todas de natureza biológica, que nada têm a ver com a influência cultural. E você fica pasmo e mais pasmo. E compreende que tem muita gente que, por conveniência ou travamento mental, ainda não consegue admitir fatos, por mais já cientificamente comprovados que sejam.
E então, ou você desiste, ou insiste, segue falando a verdade. Chove no molhado, quantas vezes necessário for, até que um dia se perceba que a razão se fez consenso. Salve, Marina Colasanti por ter-me ajudado a ver essa e tantas outras verdades, necessárias ao estabelecimento dos propósitos de um escritor.
Ricardo Alfaya, Rio de Janeiro, 01 de fevereiro de 2025. Marina faleceu em 28 de janeiro de 2025, aos 87 anos.